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CHEFES E ESTADISTAS

Marco Aurélio Nogueira
07/09/2014



A nova estrutura globalizada do mundo e da vida — com a dinâmica e os desafios a ela inerentes — complica e perturba as organizações. Sobre esta base, operam os que são chamados a desempenhar funções de direção.

Os mais talentosos deles atuam como estadistas: aproximam e animam as pessoas, buscam fixar novas perspectivas de ação e integração, trabalham para valorizar identidades coletivas e atar os pedaços que a vida foi separando. São construtores organizacionais, fundadores de novos pactos de convivência e atuação. Sob seu comando, as organizações renascem e se lançam com ousadia no mar revolto da concorrência ou da crise. Conseguem escapar das verdades únicas e rejeitam os gargalos orçamentários, hoje onipresentes, contrapondo a eles não a subserviência, mas a altivez: no lugar de cortes e compressões, buscam aproveitar oportunidades, aumentar o leque de serviços e gerar receita própria de novo tipo. Em suma: em vez de promover adaptações erráticas nas finalidades organizacionais, os dirigentes-estadistas sedimentam e reforçam estas finalidades. Descobrem formas de preservar, atualizar e valorizar as instituições. Governam, não só administram.

Mas estes não são o único tipo de dirigente. Em nossos dias, sequer são os predominantes. Fazendo sombra a eles, estão os dirigentes menores: os chefes. Têm pouco amor pelas ideias, mas muita arrogância. Julgam-se predestinados a realizar aquilo que a realidade estaria impondo como “inevitável”. Não dirigem nem desejam fundar nada: apenas ajustam e promovem adaptações. Suspeitam de visões abrangentes, posturas intelectuais e perspectivas estratégicas, já que se concentram exclusivamente em números e resultados. Seu maior recurso é o poder, sua fé é o mercado, sua grande meta é o ajuste fiscal.

Nas mãos dos chefes, as organizações sofrem ainda mais. Algumas agonizam e chegam mesmo a perecer. Vão sendo usadas, espremidas, maltratadas. Esvaziam-se de sentido, de clareza, de fantasia. Tudo sai do eixo: a estrutura organizacional, seus integrantes, sua cultura. Vê-se, com facilidade, que por sobre o discurso “racionalizador” continuam a ser praticados atos inteiramente irracionais, movidos a loteamentos, acertos pessoais, gastos descabidos. As organizações passam a viver de modo esquizofrênico, sem saber se devem seguir suas melhores tradições, as portarias dos superiores ou os descalabros que se sucedem no cotidiano. Perdem a confiança em si mesmas. Os que nelas trabalham entregam-se às novas regras do jogo: começam a ridicularizar os que deveriam dirigi-las mas não o fazem, boicotam a instituição e buscam se viabilizar fora dela. Instaura-se o caos.

Trata-se de um estilo de gestão que alça voo embalado pela força das coisas. O mundo do futuro pede dirigentes que ajam como estadistas, mas o mundo do presente faz com que os chefes preponderem. É uma vitória da burocracia sobre a política, da razão instrumental sobre a razão crítica. A partir dela, estabelece-se que a adaptação passiva ao que existe fornece a melhor defesa possível contra os azares e as fatalidades da história. Retira-se assim, da gestão, todo o impulso vital que lhe deveria ser constitutivo. Em vez de empreendedorismo e audácia, tem-se apenas submissão a normas, a ordens vindas de cima, ao estatuto, à prudência. Desaparecem a utopia, a vontade e a paixão. O horizonte fica embaçado.

Com a preponderância dos chefes sobre os estadistas, legitima-se um discurso gerencial. Seu léxico é codificado, o estilo é paupérrimo. O discurso não existe para convencer, instigar o intelecto ou emocionar, mas apenas para comunicar decisões, determinar e dar ordens. Precisa ser frio, calculadamente feio, sem graça. Afinal, ele é decisionista, e não pode alimentar especulações ou muitas reflexões. Com o tempo, acaba caindo em contradição, pois se vê obrigado a recuperar retoricamente algumas promessas não cumpridas: a do valor das individualidades, a da criatividade, a da ousadia, a da flexibilização. Fica desconjuntado. Neste ponto, desfazem-se todas as máscaras e sobra apenas a face triste da racionalização.


Fonte: acessa.com




Marco Aurélio Nogueira é professor de Teoria Política da Unesp/Araraquara.
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