O
desenvolvimento da tecnologia digital e da internet são uma ameaça ao livro? Essa questão seria fascinante se não fosse falsa. O que é, afinal, que estaria com os dias contados? O objeto livro, o livro impresso em papel, na forma que o conhecemos há mais de meio milênio?
Em Não Contemcom o Fim do Livro (Record, 2010, tradução de André Telles), dois famosos bibliófilos e colecionadores de obras raras, o semiólogo e escritor italiano Umberto Eco e o roteirista de cinema e escritor francês Jean-Claude Charrière, colocam inteligência, erudição e bom humor a serviço do esclarecimento dessa momentosa questão, mediados pelo jornalista e ensaísta francês Jean-Philippe de Tonnac.
Afirma Eco (página 16): "Das duas uma: ou o livro permanecerá o suporte da leitura, ou existirá alguma coisa similar ao que o livro nunca deixou de ser, mesmo antes da invenção da tipografia. As variações em torno do objeto livro não modificaram sua função, nem sua sintaxe, em mais de quinhentos anos. O livro é como a colher, o martelo, a roda ou a tesoura. Uma vez inventados, não podem ser aprimorados. Você não pode fazer uma colher melhor do que uma colher."
Ou seja, apesar de sua imagem idealizada – às vezes, sacralizada – de fonte de lazer, informação, conhecimento, fruição intelectual, o livro, enquanto objeto, é apenas "o suporte da leitura", o meio pelo qual o escritor chega ao leitor. E assim permanecerá até que "alguma coisa similar" o substitua. Saber quanto tempo essa transição levará para se consumar é mero e certamente inútil exercício de futurologia. Até porque provavelmente não ocorrerá exatamente uma transição, mas apenas a acomodação de uma nova mídia no amplo universo da comunicação. Tem sido assim ao longo da História.
Tranquilizem-se, portanto, os amantes do livro impresso. Tal como "a colher, o martelo, a roda ou a tesoura", ele veio para ficar, pelo menos até onde a vista alcança. E não se desesperem os novidadeiros amantes de gadgets. Estes continuarão sendo inventados e aprimorados por força da voracidade do business globalizado. E é possível até mesmo que algum deles venha a se tomar definitivo e entrar no time do livro, da colher, da roda…
Assim, o livro-forma parece prescindir dos cuidados de quem teme por seu futuro. Mas já não se pode dizer o mesmo do livro-conteúdo. Que é o que interessa. Este, sim, corre sério risco de soçobrar na tormenta de um mercado movido por insaciável apetite de lucros.
É claro que este é um fenômeno universal, resultante do paradoxo de um extraordinário desenvolvimento tecnológico capaz de globalizar as comunicações e a economia, mas absolutamente desinteressado de acabar com a fome no planeta. Será que são coisas incompatíveis? Faz mais sentido acreditar que seja questão de valores. Valores humanos.
Voltando aos livros, quando os valores humanos passam a se traduzir em cifras, os conteúdos dançam e livro bom passa a ser livro que vende. Não é força de expressão. É uma realidade relativamente recentemente no mercado editorial brasileiro, mas conhecida há pelo menos meio século, por exemplo, no dos Estados Unidos.
Jason Epstein, diretor da Random House por 40 anos e um dos fundadores de The New York Review of Books, afirma sobre as transformações do mercado editorial norte-americano em meados do século passado: "Durante esse período, o ramo da edição de livros desviou-se de sua verdadeira natureza, assumindo, coagido pelas desfavoráveis condições de mercado e pelos equívocos dos administradores distanciados, a postura de um negócio convencional. Essa situação levou a muitas dificuldades, pois publicar livros não é um negócio convencional. Assemelha-se mais a uma vocação ou a um esporte amador, em que o objetivo principal é a atividade em si, em vez do seu resultado financeiro" (O Negócio do Livro: Passado – Presente e Futuro do Mercado Editorial – Record, 2002, tradução de Zaida Maldonado, página 21).
Segue na mesma linha o editor franco-norte-americano André Schiffrin, durante 30 anos diretor da Pantheon e co-fundador, em 1990, em Nova York, da editora sem fins lucrativos The New Press: "Na Europa e nos Estados Unidos, o trabalho de edição de livros tem longa tradição de ser uma profissão intelectual e politicamente engajada. Os editores sempre se orgulharam de sua capacidade de equilibrar o imperativo de ganhar dinheiro com o de lançar livros importantes. Nos últimos anos, à medida que a propriedade das editoras mudou de mãos, essa equação foi alterada. Hoje, frequentemente o único interesse do proprietário é ganhar dinheiro, e o máximo possível" (O Negócio dos Livros – Como as Grandes Corporações Decidem o que Você Lê – Casa da Palavra, 2000, tradução de Alexandre Martins, página 23).
Por aqui, era inevitável que o fundamentalismo de mercado também acabasse se instalando no negócio dos livros. Não faz muito tempo, num painel de editores promovido pela Fundação Instituto de Administração (FIA), com apoio da Câmara Brasileira do Livro (CBL), ficou grotescamente evidente a divisão entre os profissionais do ramo. Durante os debates, um jovem e impetuoso autointitulado defensor da saúde financeira dos empreendimentos editoriais (eu não imaginava que houvesse alguém contra isso…) lançou indignadamente sobre os do "outro lado" o anátema implacável: “Conteudistas"!
Refeito do susto, pude até me divertir com a ideia de propor aos do "outro lado" a união em torno de uma nova sigla, a CPC – Confraria dos Perigosos Conteudistas. Pois, como ensina o mestre Millôr Fernandes, aliás Vão Gôgo, ridendo castigat mores. Quer dizer: rindo castiga-se mais…