A primeira década do século XXI termina registrando o enorme sucesso comercial do ramo da indústria das cervejas no Brasil, apesar da crise econômica mundial (talvez, um pouco por esta influenciada). “Nunca neste país se vendeu (e se bebeu, naturalmente) tanta cerveja como agora”. Pode-se estimar que a produção de cerveja no Brasil dobrou nos últimos dez anos, acompanhando a curva de crescimento do consumo da década anterior que já mostrava um crescimento ano a ano. Segundo noticiários recentes publicados no O Globo e na Revista Investmais, a holandesa Heineken acabou de comprar a Femsa (Kaiser, Bavária e Sol) por US$ 7,3 bilhões (7% do mercado nacional). No Brasil a empresa AmBev é líder do mercado com 70,0% dos negócios das cervejas e assim como na Argentina (70%), sendo que no Uruguai, na Bolívia e no Paraguai, segundo estas notícias, responde por 90% (!). As concorrentes Nova Schin e a Itaipava (11,6%, 9,6%, respectivamente) somadas a outras marcas menores, completam o “saudável” mercado brasileiro das cervejas. As outras bebidas alcoólicas têm, também, importante participação, mas não tanto como a cerveja uma vez que o vinho e a cachaça têm limitações contra a livre e maciça propaganda (Lei nº 9.294, de 1996). E mais ainda, o que nos preocupa, com relação à área da Saúde Pública, é o enorme interesse de outras grandes empresas de cerveja do mundo virem para o Brasil de olho neste “saudável” mercado com ampla e irrestrita liberdade de propaganda estimulando o consumo sustentado. O nosso consumo per capta já é significativo: em torno de 60 litros/pessoa/ano, sendo que em grandes cidades como o Rio e São Paulo, por exemplo, passa de 100 litros per capta. Estamos chegando mais perto dos países com grande nível de consumo como EUA, Alemanha e República Checa (158 lts/pessoa/ano).
A partir de 1996, com a promulgação da Lei 9.294 / 1996, a maciça propaganda das cervejas, então excluídas do controle da publicidade de bebidas alcoólicas (o vinho e a cachaça ficaram sob controle) e de cigarros, as cervejarias aumentaram em mais de 100% a sua produção em nosso país. Deste modo, o Brasil passou a ser o 3º maior produtor mundial de cerveja (10,8 lts/ano), depois da China (em 1º com 35 lts/ano) e dos EUA (em 2º com 23,8 lts/ano). Para 2010, a expectativa da indústria é passar dos 12 bilhões de lts/ano, aumento de 10% na produção (e consumo), graças ao excelente marketing e ao fato de ser 2010 o ano da Copa do Mundo na África do Sul, que tem, inclusive o patrocínio desta indústria. Ao contrário do que se deveria considerar nesta Lei, a cerveja é bebida alcoólica como o vinho, a cachaça, o uísque, a vodka, etc. e possui a mesma quantidade de álcool por dose padrão (uma lata ou uma tulipa de 300 ml), tendo 5% de teor alcoólico, contém 15 ml de álcool puro como uma taça de vinho (150 ml) ou uma dose de cachaça ou uísque (40 ml) que têm igualmente cerca 15 ou 16 ml de álcool puro na sua composição. Portanto, como se vê, cerveja não é bebida (alcoólica) fraca!
Não se trata aqui de demonizar o álcool, ou a cerveja em particular, mas de fazer algo parecido com a campanha de prevenção dos problemas do cigarro. Fortes campanhas de informação e de conscientização das consequências sobre a saúde e sobre a segurança relacionadas com o uso e/ou abuso de bebidas alcoólicas, incluindo a mais consumida que é a cerveja, deveriam ser implementadas pelo governo e outras instituições da Sociedade Civil organizada. No entanto, o que todos nós estamos fazendo? Assistindo, quase impotentes, às perdas e os danos relacionados ao uso, abuso e dependência das bebidas alcoólicas. Preocupados mais em cuidar das consequências (mortos e feridos dos acidentes diários de trânsito, no trabalho ou em casa, das centenas de milhares de doentes, dos dependentes e de seus familiares, do precoce alcoolismo dos jovens, etc.) do que em enfrentar o problema de forma global e sistêmica, precisamos melhorar nossas estratégias de políticas públicas. Existem muitas dificuldades a serem enfrentadas, desde o forte lobby da indústria à cultura do beber associada a festas, beleza, sensualidade, bem-estar, sucesso e felicidade, dinheiro ou boa posição social, gregarismo (vale lembrar a imagem comum de um grupo de amigos felizes no bar)… Uma das grandes dificuldades no enfrentamento de se buscar melhor equilíbrio entre uso e o abuso deletério para saúde, reside na exata proporção do grande negócio e do enorme lucro desta indústria e seu forte “lobby”. Segundo dados da própria indústria, o Brasil já é o 3º maior produtor mundial de cerveja. Como vem sendo constatado, há fortes indicativos de efetivo crescimento deste mercado graças, sobretudo, aos estímulos para o aumento do consumo entre os jovens e mulheres (foco na faixa de 18 a 29 anos de idade), alvos preferidos das bonitas e inteligentes campanhas de publicidade.
Só para se ter uma ideia do PIB deste mercado no Brasil, vejamos: 12 bilhões de litros = 36 bilhões de latinhas ou de chopes (300 ml a dose média)= x R$ 3.0 (preço médio de balcão)= R$ 108 BILHÔES/ano! Sem contar com o movimento relativo ao comércio do vinho e das bebidas destiladas (cachaça, uísque, etc.). É quase duas vezes o valor do orçamento do Ministério da Saúde (55 bilhões de reais)! Contudo, temos que reconhecer o lado positivo desta indústria: mais de 20.000 empregos diretos nas dezenas de fábricas no Brasil; centenas de milhares de empregos indiretos de vendedores, distribuidores e dos ligados aos milhares de pontos de venda; além dos altos impostos pagos para o Governo.
Entretanto, não podemos deixar de considerar os gastos do Governo brasileiro, e da sociedade em geral, com os milhares de mortos e feridos/ano dos acidentes de trânsito dos fins de semana: mais de 30.000 crianças, que nascem com déficit ou distúrbio mental decorrentes da SAF (Síndrome Alcoólica Fetal, uso de álcool na gravidez); milhares de leitos hospitalares clínicos e psiquiátricos, além dos do CTI e das Emergências, ocupados por pacientes com doenças decorrentes do álcool; agressões e ferimentos devido à violência contra terceiros, principalmente mulheres e crianças (daí as crianças de rua, em parte), etc. Na minha estimativa, a grosso modo, os gastos gerais com os Problemas Relacionados com o uso, abuso e dependência do Álcool, podem chegar a mais de 4 vezes o orçamento do Ministério da Saúde, ou seja, algo em torno de 7% do nosso PIB!
Sem dúvida, estamos diante de um grande e complexo desafio no âmbito da Saúde Pública e da Segurança Social, não só no Brasil, mas também em muitos países desenvolvidos ou emergentes. Na Rússia, por exemplo, o Alcoolismo é bastante grave: estima-se que metade das mortes dos adultos esteja ligada ao abuso ou dependência das bebidas alcoólicas. No Brasil o problema é também, naturalmente, bastante sério.
Não se trata de combater o lucro, mas de privilegiar e priorizar, com mais bom senso, a Saúde e o bem-estar social.