Resumo:
Objetivo: O uso de piercings pelos jovens vem sendo adotado como uma nova abordagem de estilo e inclusão social. Muitas são as áreas de aplicação na boca: língua, lábios, bochechas, dentes e úvula. Inúmeros problemas têm sido relatados associados ao uso de piercing na língua, como: cálculo, halitose, recessão gengival, trauma na mucosa, hipersalivação, hemorragia e até tromboflebite do seio sigmoide e endocardite estreptocócica. Este relato de caso clínico mostra uma técnica restauradora, minimamente invasiva, de dentes traumatizados e a importância do profissional quanto à orientação das consequências do uso indiscriminado dos piercings. Descrição do caso: Paciente do sexo feminino, 15 anos de idade, chegou à clínica da Disciplina de Saúde Oral do Adolescente, da UERJ, relatando ter "quebrado" o dente. Ao exame, observou uma fratura no elemento dentário 24 e uso de piercing lingual, o provável causador. O tratamento consistiu no esclarecimento quanto aos riscos do uso de piercings e confecção de uma restauração conservadora indireta de cerâmica. Após o tratamento e orientação, a paciente resolveu remover o piercing. A paciente vem sendo acompanhada e a restauração continua em perfeitas condições. Comentários: O clínico deve estar preparado tecnicamente para proceder a restauração dentária e atender o paciente atuando no físico e no psicossocial.
INTRODUÇÃO
O uso de piercings no rosto, especialmente na região da boca, está registrado na História como parte de hábitos religiosos, tribais, culturais e símbolo sexual. O primeiro registro foi encontrado na figura de um cão no Egito Antigo, aproximadamente, 1500 a.C. Para os maias representava espiritualidade, virilidade e coragem. Esquimós, hindus, chineses e índios americanos também o utilizavam como manifestações culturais. No sul da Índia, o voto de silêncio era acompanhado de colocação de piercing na língua. Há algumas décadas essa prática ressurgiu junto à moda do movimento punk e vem sendo utilizada principalmente por jovens, independentemente da classe social, preocupados como uma abordagem de estilo "arte no corpo". É representado como um sinal de individualidade, marginalidade, adorno ou aceitação dentro de um grupo ou tribo. As joias são confeccionadas de materiais hipoalergênicos e não tóxicos, como: ouro de 14 e 18K, titânio, aço inoxidável, acrílico, pedras, madeira e osso1,2,3.
Durante os últimos 30 anos, o número de etiologias relacionadas com o traumatismo dental tem aumentado significativamente na literatura e inclui um amplo espectro de variáveis, como fatores orais, ambientais e de comportamento humano.
São inúmeras as áreas de aplicação dos piercings, incluindo língua, lábios, bochechas, dente e até mesmo úvula. As complicações imediatas podem ser edema, hemorragia e infecção. Outras reações são trauma no tecido gengival e na mucosa, alterações gustativas, hipersalivação, acúmulo de cálculo, halitose, fraturas dentais, e interferência na fala, na mastigação e na deglutição. Foram relatados também na literatura casos como: endocardite estreptocócica e tromboflebite do seio sigmoide, ambas após aplicação de piercing na língua. Além disso, outro grande risco é a contaminação por uso de instrumentais infectados pelo vírus da hepatite, de HIV e de outras doenças sexualmente transmissíveis1,2,3,4.
O objetivo deste trabalho é relatar o caso clínico de uma paciente com parte de um dente fraturado devido ao adorno na língua e comparar com dados estatísticos.
APRESENTAÇÃO DO CASO
A menor C.V.O., do gênero feminino, com 15 anos de idade, procurou a clínica da Disciplina de Saúde Oral do Adolescente da Universidade do Estado do Rio de Janeiro queixando-se de que "quebrou o dente quando comia". Ao exame clínico percebeu-se uma fratura da cúspide palatina (parte coronária mais próxima ao palato) do segundo pré-molar superior esquerdo, elemento 24 (Figura 1). A paciente relatava sensibilidade dentária no local, uma vez que havia exposição da dentina. Ao exame clínico percebeu- se que a mesma apresentava um piercing na língua, em metal, com a forma de esfera, provável causador do trauma dentário (Figura 2). Algumas características da paciente são importantes ressaltar: fisicamente parecia ser mais jovem, baixa estatura, utilizava roupas que expunham o corpo e era extrovertida. Primeiramente, foram abordadas durante uma conversa as desvantagens daquele adorno, como acúmulo de placa bacteriana, lesão dos tecidos gengivais adjacentes, possibilidade de infecção e fratura de outro dente, na tentativa de estimular a remoção da joia. O tratamento dentário proposto foi reabilitador não invasivo, preservando a estrutura remanescente, utilizando um reparo de cerâmica à base de dissilicato de lítio (E-max Press) cimentado com Variolink II, cimentação Dual, utilizando o sistema adesivo Adper Scotchbond Multi-uso (3M ESPE, Seefeld, Germany) técnica de 3 passos (Figura 3). Optou-se por este trabalho porque a extensão da lesão não foi tão profunda que necessitasse de um tratamento endodôntico (tratamento de canal) e consequentemente uma coroa total, restauração que recobre todo o dente. A opção terapêutica foi baseada na idade e na possibilidade financeira da paciente. Na consulta seguinte, uma semana depois, a jovem percebeu que as desvantagens pesavam mais que o simples status que aquele objeto causava e apareceu na clínica sem o piercing (Figura 4). A paciente vem sendo acompanhada e a restauração encontra-se em perfeitas condições estéticas e funcionais após 6 meses (Figura 5 A e B).
DISCUSSÃO
Uma pesquisa realizada na cidade de São José dos Campos (SP) acompanhou 927 estudantes entre 14 e 18 anos através de exames clínicos e um questionário com os seguintes itens: idade, local do piercing, complicações e/ou alterações orais e frequência da higiene. Trinta e três estudantes apresentavam piercing oral (3,6%); 69,7% de escolas estaduais e 30,3% de particulares; a língua foi o local mais frequente (66,6%). Houve uma suave predominância masculina (54,55%). Além disso, foi observado alteração/complicação em 74.3% dos casos. Portanto, mesmo tendo-se observado baixa incidência do uso, as complicações foram proporcionalmente significantes2. O caso da jovem visto na clínica da FO-UERJ, embora isolado, confirmou alguns dados relevantes desse estudo: a língua como o local mais adornado e a complicação subsequente representada pela fratura dental.
Uma revisão de literatura buscou a prevalência das complicações de piercing na cavidade oral. Foi utilizada a fonte Medline através do PubMed Bibliographic Index de janeiro de 1992 a agosto de 2007. Em 11 artigos analisados, 3 apresentavam a prevalência (que variou de 3,4% a 20,3%). Nos outros, encontrou-se que as complicações pós-operatórias imediatas foram: inchaço e/ou infecção (24% – 98%), dor ou sensibilidade (14% – 71%), e sangramento ou hematoma; as complicações relacionadas com a joia foram, principalmente, em fratura ou desgaste dental (14% – 41%) e recessão gengival (19% – 68%). Especula-se que a fratura e desgaste dental sejam menos frequentes que a recessão gengival, visto que a gengiva geralmente sofre um estímulo constante, por exemplo, o piercing no lábio inferior, na maior parte do tempo, está em contato com o tecido gengival dos dentes anteriores, enquanto com relação aos dentes, a fratura ou desgaste depende mais da intensidade do impacto. Além disso, a gengiva é um tecido mole quando comparado ao tecido mais rígido do corpo humano, o esmalte dental.
Uma pesquisa com 966 membros entre 18 e 21 anos da Instituição Dunedin Multidisciplinary Health and Development Study, na Nova Zelândia (NZ), associou o uso de piercing corporal às características sociais, personalidade e comportamento sexual que consideravam a perfuração do corpo uma expressão corporal de si próprio. No total, 183 participantes (9% homens e 29% mulheres) apresentaram piercing em outro local além do lóbulo da orelha. Foi maior a incidência em pessoas que não moravam na NZ ou descendentes Maori. A renda e a taxa de desemprego não mostraram relação com o uso do piercing. As mulheres avaliadas mostraram-se emocionalmente mais negativas e com maior baixa autoestima; apresentaram atividade sexual no ano anterior com 5 ou mais parceiros ou algum envolvimento homossexual incluindo contato genital, quando comparadas às que não apresentavam piercing. Nos homens, a associação com o comportamento sexual não foi significativo. A teoria do comportamento sexual relacionado ao uso do piercing foi comprovada pelas mulheres nesse estudo5.
A paciente apresentou naquele momento apenas a fratura dentária, não se queixando de infecções ou hemorragias na área da lesão, e descreveu edema e dor após a perfuração. Ao realizar o exame clínico percebemos que a paciente aparentava ter menos idade que a real, devido ao físico e à voz infantilizada. Tais características nos mostraram que a intenção dela ao utilizar o piercing era parecer mais velha e "descolada", mostrando possível baixa autoestima, relacionando assim ao estudo realizado na NZ.
CONCLUSÃO
O uso de piercing na língua, assim como em outros sítios bucais, leva a complicações imediatas e posteriores.
A utilização de piercing corporal serve como expressão da personalidade, buscando aceitação do grupo e demonstração de atitude descompromissada.
O tratamento restaurador, minimamente invasivo, com cerâmica, se mostrou eficaz, estético e funcional, de custo acessível e com aceitável longevidade.
O profissional de saúde, no geral, deve orientar e apresentar as possíveis complicações e intervindo quando necessário.
REFERÊNCIAS:
1. Escudero-Castaño N, Perea-García MA, Campo-Trapero J, Cano-Sánchez, Bascones-Martínez A. Oral and perioral piercing complications. Open Dent J. 2008; 4(2):133-6.
2. Firoozmand LM, Paschotto DR, Almeida JD Oral piercing complications among teenage students Oral Health Prev Dent. 2009;7(1):77-81.
3. Levin L, Zadik Y. Oral piercing: complications and side effects. Am J Dent. 2007; 20(5):340-4.
4. Kloppenburg G e Maessen JG. Streptococcus endocarditis after tongue piercing. J Heart Valve Dis. 2007 May; 16(3):328-30.
5. Skegg K, Nada-Raja S, Paul C, Skegg DC. Body piercing, personality and sexual behavior. Arch Sex Behav. 2007; 36(1):47-54.
Autores:
Luísa de Vasconcelos Alves1; Adriana Menucci Bachur da Silva1; Ana Christina Lamosa da Fonseca2; Mauro Sayão de Miranda3
1. Aluna de graduação da Faculdade de Odontologia da UERJ.
2. Professora orientadora; Professora Dra. Adjunta da Faculdade de Odontologia da UERJ; Mestre em Odontologia/Dentística pela UERJ; Doutora em Odontologia/Dentística pela UERJ; Coordenadora do Projeto de Extensão. Reabilitação social do sorriso de adolescentes de baixa renda.
3. Professor orientador; Professor Dr. Associado da Faculdade de Odontologia da UFRJ; Professor Dr. Adjunto da Faculdade de Odontologia da UERJ; Doutor em Odontologia/Clínica pela UFRJ; Pós-Doutorado pela PUC-Rio – DCMM; Chefe do Departamento de Dentística da FO da UERJ; Coordenador do Curso de Doutorado em Odontologia/Dentística da FO da UERJ; Coordenador do Projeto de Extensão e da Disciplina Clínica de Saúde Oral do Adolescente FO da UERJ.
Fonte: Adolescência e Saúde