Por: Celso Ming*
Toda a parafernália eletrônica favorece a descentralização; essa nova relação de forças pode tirar dos Estados e dos bancos centrais o monopólio da emissão de moeda.
Inquietante artigo publicado na quarta-feira (17.01.2018) no jornal
Les Echos, de Paris, (Le bitcoin, une étape logique de l’histoire monétaire) argumenta que as criptomoedas têm de ser vistas como novo capítulo da história da moeda. E sugere: refletem “o recuo do centralismo e, portanto, o recuo do Estado”. Dia 12, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) do Brasil proibiu aplicações em criptomoedas pelos fundos de investimento. A justificativa é a de que não se sabe ainda o que são, mas que, de todo modo, “não podem ser qualificadas como ativos financeiros”.
Há um vício grave no discurso da CVM. O de desconhecer a história da moeda. Ossos, conchas e folhas de tabaco foram, no passado, utilizados como moeda. Serviram como meios de pagamento, medida de valor e reserva de valor – as três funções clássicas de qualquer moeda. E até muito recentemente, não era preciso chancela do imperador para dar credibilidade a ela.
Ainda no tempo do padrão ouro, muitas moedas eram determinadas por quantidades de metal em pó. Algumas delas tiraram seu nome de unidades de peso: talento, libra, peso, peseta, marco. Nessas condições, não comportavam carimbo ou cunhagem oficial. Eram peso em ouro ou em prata.
O papel-moeda, por exemplo, foi inventado por bancos que nada tinham a ver com governos ou bancos centrais. Eram recibos de depósito de valores que navegadores ou comerciantes confiavam a um banqueiro. Depois passaram a circular de mão em mão porque não valia a pena carregar metais.
No Ocidente, a moeda passou a ser monopólio do Estado depois da Guerra dos Trinta Anos e da Paz de Vestfália (1648), quando os maiorais da época criaram a nova ordem global, ainda em vigor, que dividiu o mundo em Estados nacionais – e não mais em territórios governados por famílias, dinastias e principados, que mudavam a cada conquista ou a cada casamento de monarca. Foi quando a moeda passou a ser monopólio de Estado.
Já nos anos 40, moedas metálicas foram consideradas “relíquias bárbaras” pelo maior economista de então, o inglês John Maynard Keynes. Portanto, estavam fadadas a desaparecer. Em 1971 desapareceu o padrão ouro e as moedas passaram a ser “promissórias” garantidas por um banco central ou um Tesouro.
Hoje, a moeda deixou até mesmo de ser material e passou a ter natureza preponderantemente escritural. No Brasil, por exemplo, menos de 10% dos meios de pagamento (M2) são em papel-moeda ou moeda metálica. O resto são depósitos bancários e títulos apenas registrados em computador. Podem ser movimentados por um cartão de plástico ou até mesmo por clique em celular.
O que garante a aceitação do bitcoin e de outras criptomoedas e, mais ainda, o que lhes dá funções de moeda é sua confiabilidade garantida por uma estrutura eletrônica eficiente, o blockchain. A alta volatilidade do seu preço pode, no momento, tirar-lhe capacidade de reserva de valor. Isso aconteceu até mesmo com o ouro e a prata, por exemplo, no século 17, quando a Espanha inundou a Europa com metais preciosos provenientes de suas colônias.
Pode ser que um estouro de bolha ou um desastre financeiro qualquer tire muitas dessas criptomoedas de circulação, mas a própria natureza delas parece capaz de tomar o lugar hoje ocupado pelas moedas nacionais – e aí entra a argumentação de Jean-Marc Vittori, que escreveu o artigo do Les Echos acima mencionado.
A tecnologia de informação e toda a parafernália eletrônica favorecem a descentralização de algumas importantes prerrogativas dos Estados. E essa nova relação de forças pode estar tirando dos Estados e dos bancos centrais o monopólio da emissão de moeda.
Por enquanto, esta é apenas uma boa hipótese para ser examinada. Mas não pode ser desprezada, como vêm fazendo os diretores da CVM.
*Celso Ming é colunista da área econômica do jornal O Estado de S. Paulo e comentarista da Rede TV e da Rádio Eldorado. Formado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo, é jornalista desde 1966 e especializado em assuntos econômicos desde 1968. Na imprensa escrita, trabalhou na Folha de S. Paulo (1966), além das revistas Veja (1968) e Exame (1970). Em outubro de 1974 assumiu a editoria de Economia do Jornal da Tarde, em que depois produziu a coluna Confira o seu Dinheiro. De 1993 a 2003, manteve coluna diária no mesmo jornal. Na televisão, foi comentarista econômico dos programas Globo Rural e TV Mulher, da Rede Globo; da Record e da Bandeirantes. De 1994 a 1998, foi comentarista econômico do programa Opinião Nacional, da Rede Cultura.