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1914

André Singer
28/12/2013



Bom texto. Áspero, mas real. Para que a Paz, a Alegria e o Progresso possam surgir, as palavras proferidas deveriam refletir sentimentos intuitivos e pensamentos elevados, perpassados pela bondade, e não as a grandiloquência da diplomacia astuta e mentirosa, acobertadora de cobiças que embrutecem os seres humanos.

Sugere-se aos que preferem começar o ano com a mente posta em imagens bonitas evitar a leitura desta coluna. Parece-me útil, contudo, lembrar os terríveis acontecimentos cujo centenário logo vai se cumprir. Pois com a eclosão da Primeira Guerra, a história fez uma curva abrupta e o século decorrido desde então sugere um contínuo de catástrofes, interrompido por ilhas de prosperidade e paz, apontando para novas tragédias.

Segundo o historiador Eric Hobsbawm, quando o Império Austro-Húngaro declarou guerra à Sérvia, em 28 de julho de 1914, começava um conflito mundial que só iria terminar 31 anos depois. Para ele, a Segunda Guerra foi mera continuação da Primeira, de tal forma que é preciso considerar o período integral, encerrado em 14 de agosto de 1945, data em que o Japão se rendeu aos aliados.

A abrangência da luta e a escala da destruição deram ao drama dessas três décadas uma característica inédita na longa crônica das atividades marciais: pela primeira vez a humanidade correu o risco real de desaparecer da face da terra. Calcula-se que algo como 8 milhões de militares tenham perecido na barbárie de 14, com 20 milhões de feridos. Dos franceses mobilizados para o front, não muito mais do que um terço voltou incólume. "Os britânicos perderam uma geração", lembra Hobsbawm.

Foi tamanho o horror das trincheiras que, encerrada a Primeira em 1918, imaginou-se nunca mais haver guerra no mundo. Ainda traumatizada, a França recusou-se a enfrentar a Alemanha quando invadida vinte anos mais tarde. No entanto, os números da carnificina iniciada em 1939 foram muito mais longe. O morticínio em massa de civis indefesos jogou os dados para a estratosfera. Entre 40 e 50 milhões de pessoas perderam a vida. O holocausto judeu e o uso da bomba atômica contra os japoneses ficaram como sintomas mais expressivos de que todos os limites tinham sido rompidos, mudando a política e a história para sempre.

No fim, "a humanidade sobreviveu. Contudo, o grande edifício da civilização (...) desmoronou nas chamas", diz Hobsbawm. Por isso, como na entrada do Inferno de Dante, 1914 inscreveu na consciência social a mensagem: "Deixai toda esperança". No caso, a expectativa de que o avanço da técnica, grande conquista dos séculos XIX e XX, tenha, em si, o dom de transformar a vida em uma viagem pacífica, fértil e amorosa. Ficou provado que a produção de riqueza, por si só, não leva o trem da sociedade a um patamar superior de relações, podendo ocorrer mesmo de ele se dirigir a toda velocidade para o despenhadeiro.

Que o conhecimento do passado nos ajude, então, a puxar os freios de emergência, na bonita expressão do filósofo Walter Benjamin. São meus votos para 2014.



Fonte: Folha de São Paulo



André Vítor Singer é um cientista político, professor e jornalista brasileiro.Graduado em Ciências Sociais e em Jornalismo, ambos pela Universidade de São Paulo. É mestre, doutor e livre docente em Ciência Política, também pela USP.
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